terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Carta a uma educanda refletindo os ensinamentos de bell hooks - via instagram

 

Oi ***, tudo bem? 

Você se refere ao texto Vivendo de Amor de bell hooks ? (minúsculas mesmo, porque ela definiu assim). 

Nossa! que coincidência (não acredito nisso rs), nos últimos tempos tenho pensado muito nessa escrita dela. (... mais uma tentativa frustrada???)

Ela nos deixou uma lição. Deve ter sido muito difícil, dolorido ela teorizar isso. Mas é uma lição extremamente necessária. Porém, ainda mais difícil de ser praticada, vivida. Porque isso perpassa pela revisitação, convivência e superação (ou não) de decepções, dores e traumas. 

Eu usei uma lição que ela "nos deixou". Porque, apesar de ser sobre e para a Mulher Negra, aquela lição fala com todos nós, cada qual em seu lugar e especificidade. 

Uma amiga muito querida me indicou esse texto anos atrás. E, eu chorei a primeira vez que eu li. Eu chorei por empatia, mas também porque vi muita coisa da minha educação e de minha mãe ali. 

Fala da Mulher Preta, sim. Mas não fala também das filhas/filhos que ela educou? Aliás, vale ressaltar que esse lugar da Mulher criar e educar crianças sozinhas é um lugar de violência imposto pelo processo de colonização europeu. Pois, não era, e não é assim, para povos tradicionais indígenas da Pachamama Ameríndia nem de África. Onde o cuidar das crianças é responsabilidade coletiva daquela comunidade e/ou sociedade.

Esse texto fala das especificidades da Mulher Negra. Mas, não acaba atingindo também todes aqueles criados num contexto de exploração e violência colonial? Porque, quem segurou (e segura)  a maior carga esmagadora desse b.o? Nesse contexto, quem educou filhos, netos, sobrinhos, vizinhos, filhos de afetos e até desafetos???? 

É duro! Mas é Amor educar para sobrevivência num contexto colonial extremamente violento voltado a exterminar a diversidade. 
Como a Mulher Preta foi forçada a ser a mais dura, a mais forte, aguentar todas as dores, sem poder chorar, sem poder Amar (infelizmente ainda é assim)... 
...Isso se tornou cultural. É mais uma "herança" da violência racista colonial. Temos que ser duros. E enxergar amor como fragilidade, onde não se pode ser frágil (Quem é frágil sobrevive?) desde tempos coloniais. Isso, foi sendo passado de geração em geração entre povos em situação de opressão que eram obrigados (e ainda são) a educar seus filhos para sobreviver...

Então, Vivendo de Amor é uma lição deixada por uma Mulher Negra para Mulheres Negras, mas ainda sim, fala em algum grau, com todos nós... ou pelo menos deveria falar...

Por exemplo: Minha mãe não é Negra. Mas eu vi no relato de hooks de como a mãe dela a educou. Muito de como minha mãe me educou. E como minha avó educou minha mãe... E como minha bisavó, provavelmente, educou minha avó... e assim por diante... 
E o mesmo com vizinhos, parentes, etc... 

Quem nunca ouviu: "se arrumar briga na rua e voltar chorando apanha de novo?" Vc é obrigado a ser forte, e se não for o suficiente e apanhar: "engole o choro"... 

Essa educação dura para sobrevivência da Mulher Negra que hooks relata, se tornou cultural naqueles povos que foram atravessados pela violência brutal da colonização. E se tornou educação dos quilombos, periferias, favelas... E esses bloqueios para o amor, atinge todos nós. Mas, novamente observo: cada qual em seu grau e especificidade. Não devemos ser ingênuos ou estúpidos a ponto de acreditar que isso tem o mesmo peso e medida para todes numa sociedade estruturalmente e hierarquicamente preconceituosa, racista, machista, homofóbica... 

Apesar de lermos e compreendermos a necessidade de viver de, e para, o Amor, praticar isso ainda é extremamente difícil. Porque, perpassa pela revisitação, compreensão e conivências com traumas. Assim como bell hooks precisou fazer para teorizar. E isso, requer uma maturidade emocional que até individualmente é difícil alcançar. Imagine coletivamente... Ainda mais quando, coisas obscenas como o racismo ainda existem produzindo  novos (antigos) traumas continuamente... Então, isso tudo, ainda continua passando de geração em geração... 

Talvez por isso, que ela, assim como Freire, fala que precisamos educar no e para o Amor... 

Mas, infelizmente, não é tão simples pessoas traumatizadas fazerem isso em âmbito coletivo na prática... Ainda mais quando ainda se tem que educar para sobreviver a tais violências... 

Por exemplo: quando você consegue lhe dar com as dores, traumas, justas desconfianças, a ponto de se abrir para o Amor... Numa relação você interage com o outro, vc está interagindo em sociedade, com pessoas que talvez ainda não tenham alcançado essa luz (o que, pensando matematicamente, é muito provável). 
Aí vira um ciclo em que a pessoa se abre, se expõe, se decepciona, se machuca de novo e se fecha para processar e curar as feridas... 


Para averiguar que isso se tornou cultural, que Amar é associado a fragilidade, fraqueza (como se nunca pudéssemos ser frágeis ou fraquejar) basta tentar dialogar com qualquer um sobre Amor... Vamos ouvir barbaridades, principalmente de meninos/homens. Se negar a Amar se tornou parte duma masculinidade tóxica, Amar é "substantivo" feminino, e o homem nega seu lado feminino (sim temos) porque ser feminino é ser frágil e ser frágil é coisa de mulher (nunca vi mentira tão absurda e vil). Ou seja, Amar é uma fraqueza e homem não pode ser fraco... E isso, até nos leva a outro ponto abordado por hooks sobre o episódio da Mulher Negra não ser reconhecida como Mulher pelo feminismo eurocêntrico...

Na verdade isso também faz parte do mesmo problema...

Enfim... desculpe o textão...


Concluindo ... 
O que eu quis dizer é que: apesar de ler e compreender a lição deixada por hooks e conseguir lhe dar, em algum nível suportável, com dores, medos, traumas, inseguranças, a ponto de se permitir abrir para o Amor. Ainda assim, será muito difícil encontrar e se relacionar com uma pessoa nesse mesmo momento estágio emocional da vida e em sintonia com você. Estamos todos muito embarreirados para o Amor. Por tudo isso citado acima e por várias decepções afetivas ao longo da trajetória de cada indivíduo . 

Por isso, muitos de nós ainda vemos o Amor como problema, uma coisa a ser evitada e combatida. Porque se eu tenho um projeto de vida, de carreira, consumo, o "amor" só atrapalharia. Porque eu vou me decepcionar de novo, vou me desequilibrar emocionalmente e não vou conseguir fazer o que tenho que fazer pra conquistar o que quero (ou preciso). Ou seja, a gente já adianta sofre por ansiedade o que ainda nem aconteceu, e pode nunca acontecer, e já conclui que aquilo não vai dar certo, não vai ser bom, coloca a pessoa pra fora da vida, fecha a porta e segue o baile se iludindo que foi melhor assim. Foi melhor não viver aquele Amor... 😢 

E seguimos... sem Amor...


Quando Amor, Amor mesmo (e importante frisar, não existe um modelo único de Amar, pelo menos acredito nisso), só soma e constrói. Amor não atrapalha em nada. Amor realiza. O problema é que talvez, devido essa sociedade toda distorcida, não saibamos Amar...


Mas é fato! Nós precisamos reaprender. E só tem um jeito de fazer isso, seguindo a lição que bell hooks nos deixou... vivendo de Amor. E educando com e para o Amor. 


Dito tudo isso! É muito mais fácil para o Homem se abrir para o Amor, até nisso nós estamos num lugar de privilégio em relação as Mulheres. Porque? Numa sociedade racista e patriarcal, temos muito menos em jogo, muito menos a proteger, muito menos a arriscar. Ainda mais, caso se trate de um homenzinho/menino para o qual é naturalizado o abandono afetivo e paterno. 

Enquanto a Mulher (mais ainda a Negra), em contrapartida, além dos sentimentos, está pondo tudo em risco. Desde projetos pessoais, estudos, carreira, diversões, liberdade, ambições... Porque a ela sozinha foi, injustamente, relegado o papel de cuidar, proteger as crias, a família, o sustento na saúde ou doença. E isso é cruel! Porque meninos simplesmente fogem de forma covarde, patética, indiferente, ao primeiro sinal de cansaço (salvo engano as raras exceções). 


Agradecimentos,

A bell hooks pelo legado e a educanda por provocar, oportunizar alguma  organização de reflexões que venho tendo há algum tempo a partir de minhas vivências afetivas...

Obrigado.




Observações:
O nome da educanda foi ocultado por motivos óbvios do seu direito a privacidade. 
Na transcrição foram feitas correções ortográficas e revisão textual. O texto tem algum acréscimo de ideias das quais, algumas construídas durante o diálogo em troca com a educanda (mas o grosso do texto, que virou uma carta rs, foi escrito no instagram mesmo).


Referência Bibliográfica (sim, apesar de ter escrito de improviso de forma informal no Instagram tem referências bibliográficas e de saberes, e eu consigo identificar algumas)


 Vivendo de Amor de bell hooks
https://www.geledes.org.br/vivendo-de-amor/ (acessado novamente em 24/01)


O Espírito da Intimidade - Ensinamentos Ancestrais Africanos Sobre Maneiras de Se Relacionar de Sobonfu Somé (inclusive, ainda estou lendo)


Ideias para adiar o fim do mundo Ailton Krenak