Por Anderson Benelli
FLÁVIO DE CARVALHO: O NU PSICOLÓGICO
Flávio de Carvalho explorou o estudo do nu clássico. Aceito pelos valores tradicionais da arte, o artista o usou para romper com o próprio conservadorismo da sociedade e arte acadêmica. Flávio de Carvalho com sua forte pintura expressionista chocou a sociedade e o meio acadêmico, chegando a ser rotulado por grande parte da crítica como “pintor maldito”.
Após a leitura de alguns livros e textos sobre o artista, as dificuldades se tornaram presentes na interpretação dessas obras. Durante as conversas e trocas com os professores orientadores desse projeto interdisciplinar, José Minerini Neto e Nelson Somma Jr., uma questão foi levantada: qual a poética do artista? Uma problematização que fez com que surgisse outra série de indagações. De súbito, no momento da descoberta de sua obra, surgiu um momento EUREKA, onde toda informação adquirida organizou-se em uma única reflexão. Enquanto nossas mentes estavam longe de Flávio de Carvalho e suas problematizações, ocorreu uma introspecção sobre a “tese” do próprio, a Cidade do homem nu:
“Nos dias de hoje, a fadiga é manifesta, o homem máquina do classicismo moldado pela
repetição continua dos feitos seculares do cristianismo, não mais pode aturar a monotonia
dessa rotina. Ele perecerá asfixiado na seleção lógica, pelo mais eficiente, pelo homem natural.
A fadiga ataca, ele precisa despir-se, apresentar-se nu, sem tabus escolásticos, livre para o
raciocínio e o pensamento”. (CARVALHO, Apud. DAHER, 1982, p. 100.).
Esta tese acabou sendo o principal veículo a nos levar ao desenvolvimento da interpretação sobre a obra do artista.
Recebemos o texto Cidade do homem nu, como um auto-retrato do artista e de sua obra, exatamente como seu auto-retrato pintado, com isso percebemos os dois trabalhos como sendo uma única obra, e não só os dois, mas toda sua obra plástica se converte em uma, se ligadas por essa poética.
Partindo do pensamento: que todos nascemos nus, (não estamos nos referindo a roupas) puros, libertos de qualquer preconceito e valor. Com o passar dos anos, como um baú vazio, somos preenchidos, contaminados por heranças culturais e valores e muitas vezes aceitando-os como certos e inflexíveis, até que o baú fique repleto de informações que geram indagações: quanto de si há nesse baú? Daí por diante apontamos duas alternativas: aceitar essa herança, ou começar a rever princípios estabelecidos, para que possa acrescentar novos e próprios valores a esse baú.
Flávio de Carvalho como todo bom artista vanguardista, através de sua obra, optou pela segunda escolha, propondo a si mesmo, à sociedade e a seus retratados, que se despissem desses valores, ou seja, que esvaziassem seus baús, abrindo assim, espaço para acrescentar novos e próprios valores a si mesmos. Talvez por isso, o nu é tão presente em sua obra, nu este, que vai muito além do nu carnal, favorecendo o surgimento do “homem natural”, buscado desde os primórdios do expressionismo como mostra essa passagem de Behr:
“ Para os Brücke[1],, também a representação da sexualidade franca e aberta alinhava-se a sua
interpretação do “natural”, em oposição as relações
“artificiais” entre os sexos. O nu feminino e as
insinuações eróticas na interação entre artista e modelo
ocupavam o primeiro plano em suas representações
do interior dos ateliês”. (BEHR, 2001, pg. 19).
Isso também pode explicar a predileção do artista pelo nu feminino. Em um tempo de rígidos valores conservadores em que a mulher não tinha voz, nos desenhos de traços fortes e agressivos do artista, a mulher retratada grita, se rebela, se liberta de toda repressão. O traço expressionista rompe a barreira do psicológico, revelando o ser reprimido que dorme no interior da pessoa. Nada mais apropriado do que o traço marcante e espontâneo usado pelo artista, lembrando um esboço, para revelar o oculto no lado obscuro do retratado. O contraste explorado faz com que tenhamos a sensação de que o natural insurge da escuridão.
A comparação entre o nu figurativo de Flávio, com os nus clássicos é inevitável: as figuras nuas da renascença, usadas para representar Deusas e Deuses ganham uma expressão serena elevando a imagem à divindade, Flávio de Carvalho, expõe exatamente o contrário, representa o ser humano comum e revela seus desejos mais íntimos.
Portanto, a exposição ao nu não é superficial e nem se limita aos seus desenhos, englobando, senão toda, quase a totalidade sua obra. Em sua pintura, liberto dos traços fortes e agressivos encontrados em seus desenhos, o artista explora as cores, para vencer a barreira imposta pelo psicológico e despir o retratado. A pele é considerada uma proteção, uma armadura, uma muralha a ser superada, para que assim, o eu escondido possa ser alcançado.
Com pinceladas fortemente gestuais e cores não menos intensas, o Flávio pintor abre mão do tecido, revelando músculos com uma textura convidativa ao toque, chegando ao ápice do expressionismo e dando-nos a impressão que o ser revelado pode saltar da tela a qualquer momento, surpreendendo até mesmo o próprio retratado, como foi o caso de Mário de Andrade:
“Quando olho para o meu retrato pintado por Segall me sinto bem. È o eu convencional, o decente, que se apresenta em público. Quando defronto o retrato feito pelo Flávio, sinto-me assustado, pois vejo nele o lado tenebroso de minha pessoa, o lado que escondo dos outros.”
(ANDRADE, Apud. OSORIO, 2000, p. 28).
Percebe-se também que nos retratos pintados pelo artista, certo destaque é dado às mãos, possível referência vinda do teatro, área onde também teve importante atuação na qual as expressões faciais acompanhadas pelos gestos corporais (e das mãos), também acrescentam forte expressão aos
personagens pintados.
Retomando a poética da cidade do homem nu e do homem natural, ao qual o artista se refere, interpretamos com esse olhar a série trágica de sua mãe morrendo.
Partindo da condição natural da própria vida, depois do nascimento a única certeza que se tem é a de que morreremos. Como, quando e onde? Não sabemos. Será esse o porquê da morte por si só nos chocar tanto? Nada mais natural no ciclo da vida do que o filho presenciar a morte da mãe, um desejo de toda mãe de partir antes do filho. Então porque o fato de Flávio (filho e artista) registrar o que seria natural chocar tanto?
Retomemos o “baú” e tomemos como exemplo os egípcios. Apesar de a arte egípcia abordar a morte há muito tempo atrás, este fato não contribuiu para a aceitação desta. Contrariamente, os faraós eram enterrados com suas riquezas e com escravos sacrificados, em uma tentativa de levar a vida após a morte, indicando assim, uma não conformação com a morte. E se tirássemos esses cultos aos mortos herdados de civilizações passadas do “baú”?
Talvez, receberíamos a morte mais naturalmente.
Não pretendemos afirmar que não sentiríamos dor ao perder um ente querido com qual convivemos anos, ainda mais se tratando de uma mãe, na qual todos sabem a grande importância; continuaríamos sofrendo muito. Certamente Flávio de Carvalho sofreu essa dor. Dor essa, que assim como a morte, faz parte do ciclo natural da vida. Mas para uma sociedade que recebeu de herança, conservadorismo, tabus e preconceitos. O fato de um filho ter registrado e exposto a mãe morrendo na Série Trágica, não foi nem será aceito passivamente, o que talvez explique o rótulo que recebeu de “pintor maldito”.
Nessa série, os traços fortes, ruidosos e agressivos do expressionismo de Flávio de Carvalho, revelam ao mesmo tempo a dor, a angústia e o sofrimento de mãe e do filho. O obscuro da morte toma conta de ambos, a luz apagando-se, a vida esvaindo-se, o último suspiro de vida de Dona Ofélia e mais um dos muitos suspiros de dor, por parte do filho. Diante da morte, ambos desprotegidos, ambos nus diante da condição natural da vida.
A experiência nº 2
Durante uma procissão em 1933, Flávio de Carvalho caminhou contra o fluxo de fiéis de boné e sem nenhuma proteção. O objetivo da experiência foi testar o limite do “homem de fé”, resultando na fúria da multidão que parte para cima do artista provocador, que só não foi linchado porque houve interferência policial.
O artista, acuado pela multidão temeu pela sua vida. Esse sentimento de medo e de estar próximo da morte é percebido também nas obras: Assistia emocionado o meu desmanchar (nanquim), A inferioridade de Deus (óleo) e a Ascensão definitiva de Cristo (óleo).
Flávio de Carvalho se expôs “nu” diante da multidão vestida de valores calcados na tradição cristã, que se enfureceu pelo simples fato dele estar caminhando contra o fluxo da procissão de boné e contra essa tradição. Porém, o objetivo do artista foi alcançado: a multidão de “fiéis” se despiu de seus valores religiosos deixando o lado obscuro vir à tona, libertando o selvagem de cada um, libertando o homem natural.
Apesar de alguns dizerem que a Cidade do homem nu foi puro romantismo. Flávio de Carvalho, artista de vanguarda atuando à frente dos valores sociais e artísticos de seu tempo, contribuiu ativamente, para a sobrevivência do modernismo depois da semana de Arte Moderna de 1922. Flávio, não só levou a sério como viveu sua tese, já que sua obra mistura-se com sua vida.
“Porque entravar o progresso com o velho mecanismo escolástico, porque venerar o passado, quando não
conhecemos nenhum pensamento, porque abafar os nossos desejos, quando não conhecemos a natureza última
desses desejos, não conhecemos se quer as conseqüências desses desejos”.
(CARVALHO, Apud. DAHER, 1982, p.100).
Anderson Benelli
Colaboração:
Ana Carolina Beraldo
Bruna Benitez
Stephani Kiss
ANEXO
Uma tese curiosa
“Diário da noite”, de 1/ 7 / 1930
(Apresentada ao IV Congresso Pan-Americano de Arquitetura e Urbanismo)
“A Cidade do Homem Nu”, tese livre do Engenheiro Civil Sr, Flavio de Rezende Carvalho.
O Sr. Flavio de Rezende Carvalho, engenheiro civil e collaborador do”Diário da Noite”, apresentou no IV Congresso Pan-Americano de Arquitetura e Urbanismo a seguinte tese, intitulada “A cidade do homem nu”.
“O mundo caminha, progride. O estudo das legislações atuais nos leva a convicção de que as cidades futuras terão que abordar problemas opostos aos trazidos até hoje pelas concepções cristãs da família e da propriedade privada”.
Cumpre a nós, povos nascidos fora do peso das tradições seculares, estudar a habitação do homem nu, do homem futuro, sem deus, sem propriedade e sem patrimônio. No norte da Alemanha, como em diversas partes do mundo culto, a ligação livre é um fato.
A concepção do estado como único proprietário tende a se impor com a socialização dos filhos e da fortuna, sendo que, na conservadora Inglaterra, o imposto sobre a herança já atingiu a 40 por cento.
O homem perseguido pelo ciclo cristão, embrutecido pela filosofia escolástica, exausto com 1500 anos de monotonia recalcada, aparece ao nosso século como uma maquina usada, repetindo tragicamente os mesmos movimentos ensinados por Aristóteles. O ciclo cristão destaca sobre as outras religiões por ter dominado o homem mais civilizado. Mas este homem civilizado acorda para ver no ciclo cristão a destruição de si mesmo. As outras religiões são narcóticos idênticos. O burguês venera o passado e os acontecimentos do passado tal como o concebeu tradição decaída: ele repete o passado sem saber porque; ele aos poucos destrói o seu organismo, as possibilidades de progresso e mudança.
Nos dias de hoje, a fadiga é manifesta, o homem maquina do classicismo moldado pela repetição continua nos feitos seculares do cristianismo, não mais pode aturar a monotonia dessa rotina. Ele perecerá asfixiado na seleção lógica, pelo mais eficiente, pelo homem natural.
A fadiga o ataca, ele precisa despir-se, se apresentar nu, sem tabus escolásticos, livre para o raciocínio e o pensamento.
Apresentar sua alma para pesquisas; procurar a significação da vida.
Violentamente atacado de cristianismo, o progresso que cura será talvez lento, mas não impossível.
Perseguido pelos tabus da sociedade, ele limita a seus desejos, aperta o seu cérebro, impedindo o raciocínio de funcionar, dando preferência á repetição por encontrá-la feita; evitando a todo custo instante a mudança, transformação indispensável ao progresso.
Por que entravar o progresso com o velho mecanismo escolástico, por que venerar o passado, quando não conhecemos nenhum limite ao pensamento, por que abafar os nossos desejos, quando não conhecemos a natureza ultima desses desejos, não conhecemos sequer as conseqüências desses desejos?
O homem livre, despido dos tabus vencidos, produzirá coisas maravilhosas, a sua inteligência libertada criará novos ideais, isto é, novos tabus, o seu ‘ego’ selecionara automaticamente em grupos, procurando caracterizar em cada grupo uma serie de tendências.
Livre, ele sublimará seus desejos com saciedade, aparecendo logo novos desejos, apontando para novas tendências. . . Isto é mudando . . . progredindo.
Livre, ele se organizará automaticamente porque não encontrará nenhum impedimento social que proíba organizar – e poderá progredir.
Presentemente, ele labora lutando contra as suas tendências sem um objetivo em vista, sem saber porque ele luta, nem aonde vai. É um mecanismo de repetição não produtivo, é um mecanismo nefasto que procura destruir o que há de mais grandioso; procura destruir a sua possibilidade de melhorar, de progredir.
O homem se destrói a si mesmo, sem saber por que.
A visão de uma nova era se apresenta para a humanidade. Um novo momento atrai o homem: como progredir?
A sua índole repele o passado por que no passado nada viu senão a repetição dos dogmas inconvenientes. Ele deseja saltar fora do circulo, abandonar o movimento recorrente e destruidor de sua alma, procurar o mecanismo de pensamento que não entrave o seu desejo de penetrar no desconhecido.
Pesquisar a sua alma nua, conhecer a si próprio.
Mas, qual será esse mecanismo?
Em S. Paulo fundou-se, há alguns anos, a ideologia antropofágica, uma exaltação do homem biológico de Nietsche, isto é, a ressurreição do homem primitivo, livre dos tabus ocidentais, apresentação sem a cultura feroz da nefasta filosofia escolástica. O homem, como ele aparece na natureza, selvagem, com todos os seus desejos toda a sua curiosidade intacta e não reprimida. O homem que totêmica, o seu tabu, tirando dele o rendimento máximo. O homem que procura transformar o mundo não métrico no mundo métrico, criando novos tabus para novos rendimentos, incentivando o raciocínio em novas esferas. Esta idéia iniciada em São Paulo por Raul Bopp, Oswaldo Costa, Clovis Gusmão, Oswald de Andrade e outros, com ramificações no Rio e outros Estados, foi entusiasticamente recebida pelo filosofo Keyserling e o urbanista Le Corbusier que viram nela um mio de progredir: uma possível felicidade longínqua.
O homem antropofágico, quando despido de seus tabus assemelha-se no homem nu.
A cidade do homem nu será sem duvida uma habitação própria para o homem antropofágico. Lá ele poderá sublimar os seus desejos organizadamente. Lá, ele poderá sentir em si a renovação constante do espírito; o movimento da vida aparecera de um realismo estonteante e ele compreendera que viver é raciocinar velozmente e dominar os tabus pela compreensão.
A cidade americana não é mais a cidade-fortim da conquista. Ela será a cidade geográfica e climatérica, a cidade do homem nu, do homem com o raciocínio livre e eminentemente antropófago.
A cidade antropofágica satisfaz o homem nu porque ela suprime os tabus do matrimonio, e da propriedade, ela pertence a toda coletividade, ela é um imenso monolito funcionando homogeneamente, um gigantesco motor em movimento, transformando a energia das idéias em necessidades para o individuo, realizando o desejo coletivo produzindo felicidade, isto é, á compreensão da vida ou movimento.
A cidade do homem nu será toda ela a casa do homem. O homem encontrará na sua casa imensa, as suas necessidades organizadas, arquivadas em locais apropriados, permitindo o acesso fácil e em imediato. Ele não perderá energia inutilmente como nosso homem de hoje. A sua fadiga será a mínima, o seu rendimento espantoso surpreendera a ele próprio, ele encontrará na sua vida uma nova felicidade, a felicidade da eficiência; um novo orgulho, o de ter conquistado a sua alma, o orgulho da compreensão da sua existência e do desejo de mudar sempre.
A cidade organizada formará um único monolito com aspecto uniforme. O aspecto será função das necessidades do homem.
Ela simbolizará pelas suas formas, pelas suas cores, o mecanismo da alma do homem nu.
A cidade será a imagem matemática do homem livre, o homem que repeliu a angustia do dogma escolástico, do homem que libertou o seu raciocínio de uma decrepitude indesejável.
As necessidades do homem serão concêntricas por ser a disposição concêntrica mais igualmente acessível a todos. Elas serão localizadas em círculos concêntricos. O bem estar geral da cidade, a magnitude da eficiência da vida da cidade depende da posição relativa dessas zonas.
Uma zona inconvenientemente locada, em relação ao centro, poderá trazer sérios distúrbios no equilíbrio orgânico das cidades, perturbando o seu processo.
As nossas cidades de hoje são verdadeiros pandemônios e vivem em constante desequilíbrio.
O homem de hoje gasta as suas energias inutilmente devido ao organismo doentio da cidade. A cidade cansa o homem, destruindo a sua energia vital.
O homem da cidade de hoje não aproveita a sua capacidade de produção, não pode aproveitar, porque o organismo burguês desorganizado tudo faz para aniquilar no homem o gosto pela vida, o entusiasmo de produzir coisas, o desejo de mudar.
A cidade do homem nu será a metrópole da oportunidade, um centro de sublimação natural dos desejos do homem, um centro de reanimação de desejos exaustos; um grande centro de produção de vida orgânica, de seleção e distribuição desta vida em formas de energia útil ao homem. Um grande centro de pesquisas para descobrir as coisas do universo e, da vida, para conhecer a alma do homem, torná-la métrica e utilizá-la no bem-estar da cidade.
A cidade do homem nu é dominada pelo centro de pesquisas, é esta a única autoridade constituída; ele seleciona e distribui, de acordo com o critério cientifico, ele domina e ordena todas as energias da metrópole, ele é o deus mutável, o deus em movimento continuo, o deus símbolo do desejo maravilhoso de penetrar no desconhecido.
O centro de pesquisas em forma de um anel externo e concêntrico com os outros anéis. Ele é o primeiro anel da cidade,
O centro de ensino de orientação do homem é um anel anexo ao centro de pesquisas. O centro de gestação, máquina imensa onde a vida estudada, catalogada, se encontra isolada por um parque do centro de pesquisas.
Devido ás magníficas condições higiênicas das cidades, o centro hospitalar é pequeno e faz parte do centro de pesquisas.
A erótica ocupada na vida do homem nu uma posição de destaque. O homem nu selecionará ele mesmo as suas formas de erótica; nenhuma restrição exigirá dele este ou aquele sacrifício; a sua energia cerebral será suficiente para controlar e selecionar os seus desejos.
A zona erótica é realmente um imenso laboratório onde se agitam os mais diversos desejos, onde o homem nu pode encontrar a sua alma antiga, pode projetar a sua energia solta em qualquer sentido, sem repressão: onde ele realiza desejos, descobre novos desejos, impõe a si mesmo uma seleção rigorosa e eficiente, forma o seu novo ‘ego’, orienta o seu libido e destrói o ilógico, aproximando-se assim do deus símbolo, sublime angustia do desconhecido da mutação do não métrico.
A religião tem o seu lugar adequadamente localizado na zona erótica. A administração se encontra no núcleo central da cidade assim como a locomoção que é toda subterrânea e se irradia desse núcleo.
A habitação está localizada num grande anel central próximo a administração.
***
A cidade do homem nu é a habitação do pensamento, o homem produz idéias que são orientadas e aproveitadas na melhoria da raça e no caminhar do progresso.
É uma grande máquina de idéias para calcular o meio de progredir sempre, calcular um processo de constante renovação mental.
Os núcleos industriais e produtivos estão situados fora da grande máquina de calcular. A cidade do homem nu é um motor gastador de idéias que orienta e dirige o país movimentando a industria e a agricultura, preparando o homem para ser feliz.
O continente americano, pela sua privilegiada situação histórica, está mais apto que qualquer outro a contemplar o problema do homem nu.
O continente americano não herdou do passado o recalque trágico da filosofia escolástica, ele possui elementos próprios para criar uma civilização nua; um novo mecanismo despido dos tabus da velha Europa, uma renovação cientifica e estética que o colocará na vanguarda da organização humana.
***
Convido os representantes da América a retirarem as suas mascaras de civilizados e pôr á mostra as suas tendências antropófagas, que foram reprimidas pela conquista colonial, ma que hoje seriam o nosso orgulho de homens sinceros, de caminhar sem deus para uma solução lógica do problema da vida da cidade, do problema da eficiência da vida.”
Flávio de Carvalho
Referências bibliográficas
BEHR, Shulamith. Expressionismo, São Paulo: Cosac & Naify edições, 2001, 2ªed.
DAHER, Luiz Carlos. Flávio de Carvalho: Arquitetura e expressionismo, São Paulo:
Projeto 1982.
OSORIO, Luiz Camilo. Flávio de Carvalho, São Paulo: Cosac & Naify edições, 2000.
Espaços da arte brasileira.
BIOGRAFIA
Flávio de Carvalho explorou o estudo do nu clássico. Aceito pelos valores tradicionais da arte, o artista o usou para romper com o próprio conservadorismo da sociedade e arte acadêmica. Flávio de Carvalho com sua forte pintura expressionista chocou a sociedade e o meio acadêmico, chegando a ser rotulado por grande parte da crítica como “pintor maldito”.
Após a leitura de alguns livros e textos sobre o artista, as dificuldades se tornaram presentes na interpretação dessas obras. Durante as conversas e trocas com os professores orientadores desse projeto interdisciplinar, José Minerini Neto e Nelson Somma Jr., uma questão foi levantada: qual a poética do artista? Uma problematização que fez com que surgisse outra série de indagações. De súbito, no momento da descoberta de sua obra, surgiu um momento EUREKA, onde toda informação adquirida organizou-se em uma única reflexão. Enquanto nossas mentes estavam longe de Flávio de Carvalho e suas problematizações, ocorreu uma introspecção sobre a “tese” do próprio, a Cidade do homem nu:
“Nos dias de hoje, a fadiga é manifesta, o homem máquina do classicismo moldado pela
repetição continua dos feitos seculares do cristianismo, não mais pode aturar a monotonia
dessa rotina. Ele perecerá asfixiado na seleção lógica, pelo mais eficiente, pelo homem natural.
A fadiga ataca, ele precisa despir-se, apresentar-se nu, sem tabus escolásticos, livre para o
raciocínio e o pensamento”. (CARVALHO, Apud. DAHER, 1982, p. 100.).
Esta tese acabou sendo o principal veículo a nos levar ao desenvolvimento da interpretação sobre a obra do artista.
Recebemos o texto Cidade do homem nu, como um auto-retrato do artista e de sua obra, exatamente como seu auto-retrato pintado, com isso percebemos os dois trabalhos como sendo uma única obra, e não só os dois, mas toda sua obra plástica se converte em uma, se ligadas por essa poética.
Partindo do pensamento: que todos nascemos nus, (não estamos nos referindo a roupas) puros, libertos de qualquer preconceito e valor. Com o passar dos anos, como um baú vazio, somos preenchidos, contaminados por heranças culturais e valores e muitas vezes aceitando-os como certos e inflexíveis, até que o baú fique repleto de informações que geram indagações: quanto de si há nesse baú? Daí por diante apontamos duas alternativas: aceitar essa herança, ou começar a rever princípios estabelecidos, para que possa acrescentar novos e próprios valores a esse baú.
Flávio de Carvalho como todo bom artista vanguardista, através de sua obra, optou pela segunda escolha, propondo a si mesmo, à sociedade e a seus retratados, que se despissem desses valores, ou seja, que esvaziassem seus baús, abrindo assim, espaço para acrescentar novos e próprios valores a si mesmos. Talvez por isso, o nu é tão presente em sua obra, nu este, que vai muito além do nu carnal, favorecendo o surgimento do “homem natural”, buscado desde os primórdios do expressionismo como mostra essa passagem de Behr:
“ Para os Brücke[1],, também a representação da sexualidade franca e aberta alinhava-se a sua
interpretação do “natural”, em oposição as relações
“artificiais” entre os sexos. O nu feminino e as
insinuações eróticas na interação entre artista e modelo
ocupavam o primeiro plano em suas representações
do interior dos ateliês”. (BEHR, 2001, pg. 19).
Isso também pode explicar a predileção do artista pelo nu feminino. Em um tempo de rígidos valores conservadores em que a mulher não tinha voz, nos desenhos de traços fortes e agressivos do artista, a mulher retratada grita, se rebela, se liberta de toda repressão. O traço expressionista rompe a barreira do psicológico, revelando o ser reprimido que dorme no interior da pessoa. Nada mais apropriado do que o traço marcante e espontâneo usado pelo artista, lembrando um esboço, para revelar o oculto no lado obscuro do retratado. O contraste explorado faz com que tenhamos a sensação de que o natural insurge da escuridão.
A comparação entre o nu figurativo de Flávio, com os nus clássicos é inevitável: as figuras nuas da renascença, usadas para representar Deusas e Deuses ganham uma expressão serena elevando a imagem à divindade, Flávio de Carvalho, expõe exatamente o contrário, representa o ser humano comum e revela seus desejos mais íntimos.
Portanto, a exposição ao nu não é superficial e nem se limita aos seus desenhos, englobando, senão toda, quase a totalidade sua obra. Em sua pintura, liberto dos traços fortes e agressivos encontrados em seus desenhos, o artista explora as cores, para vencer a barreira imposta pelo psicológico e despir o retratado. A pele é considerada uma proteção, uma armadura, uma muralha a ser superada, para que assim, o eu escondido possa ser alcançado.
Com pinceladas fortemente gestuais e cores não menos intensas, o Flávio pintor abre mão do tecido, revelando músculos com uma textura convidativa ao toque, chegando ao ápice do expressionismo e dando-nos a impressão que o ser revelado pode saltar da tela a qualquer momento, surpreendendo até mesmo o próprio retratado, como foi o caso de Mário de Andrade:
“Quando olho para o meu retrato pintado por Segall me sinto bem. È o eu convencional, o decente, que se apresenta em público. Quando defronto o retrato feito pelo Flávio, sinto-me assustado, pois vejo nele o lado tenebroso de minha pessoa, o lado que escondo dos outros.”
(ANDRADE, Apud. OSORIO, 2000, p. 28).
Percebe-se também que nos retratos pintados pelo artista, certo destaque é dado às mãos, possível referência vinda do teatro, área onde também teve importante atuação na qual as expressões faciais acompanhadas pelos gestos corporais (e das mãos), também acrescentam forte expressão aos
personagens pintados.
Retomando a poética da cidade do homem nu e do homem natural, ao qual o artista se refere, interpretamos com esse olhar a série trágica de sua mãe morrendo.
Partindo da condição natural da própria vida, depois do nascimento a única certeza que se tem é a de que morreremos. Como, quando e onde? Não sabemos. Será esse o porquê da morte por si só nos chocar tanto? Nada mais natural no ciclo da vida do que o filho presenciar a morte da mãe, um desejo de toda mãe de partir antes do filho. Então porque o fato de Flávio (filho e artista) registrar o que seria natural chocar tanto?
Retomemos o “baú” e tomemos como exemplo os egípcios. Apesar de a arte egípcia abordar a morte há muito tempo atrás, este fato não contribuiu para a aceitação desta. Contrariamente, os faraós eram enterrados com suas riquezas e com escravos sacrificados, em uma tentativa de levar a vida após a morte, indicando assim, uma não conformação com a morte. E se tirássemos esses cultos aos mortos herdados de civilizações passadas do “baú”?
Talvez, receberíamos a morte mais naturalmente.
Não pretendemos afirmar que não sentiríamos dor ao perder um ente querido com qual convivemos anos, ainda mais se tratando de uma mãe, na qual todos sabem a grande importância; continuaríamos sofrendo muito. Certamente Flávio de Carvalho sofreu essa dor. Dor essa, que assim como a morte, faz parte do ciclo natural da vida. Mas para uma sociedade que recebeu de herança, conservadorismo, tabus e preconceitos. O fato de um filho ter registrado e exposto a mãe morrendo na Série Trágica, não foi nem será aceito passivamente, o que talvez explique o rótulo que recebeu de “pintor maldito”.
Nessa série, os traços fortes, ruidosos e agressivos do expressionismo de Flávio de Carvalho, revelam ao mesmo tempo a dor, a angústia e o sofrimento de mãe e do filho. O obscuro da morte toma conta de ambos, a luz apagando-se, a vida esvaindo-se, o último suspiro de vida de Dona Ofélia e mais um dos muitos suspiros de dor, por parte do filho. Diante da morte, ambos desprotegidos, ambos nus diante da condição natural da vida.
A experiência nº 2
Durante uma procissão em 1933, Flávio de Carvalho caminhou contra o fluxo de fiéis de boné e sem nenhuma proteção. O objetivo da experiência foi testar o limite do “homem de fé”, resultando na fúria da multidão que parte para cima do artista provocador, que só não foi linchado porque houve interferência policial.
O artista, acuado pela multidão temeu pela sua vida. Esse sentimento de medo e de estar próximo da morte é percebido também nas obras: Assistia emocionado o meu desmanchar (nanquim), A inferioridade de Deus (óleo) e a Ascensão definitiva de Cristo (óleo).
Flávio de Carvalho se expôs “nu” diante da multidão vestida de valores calcados na tradição cristã, que se enfureceu pelo simples fato dele estar caminhando contra o fluxo da procissão de boné e contra essa tradição. Porém, o objetivo do artista foi alcançado: a multidão de “fiéis” se despiu de seus valores religiosos deixando o lado obscuro vir à tona, libertando o selvagem de cada um, libertando o homem natural.
Apesar de alguns dizerem que a Cidade do homem nu foi puro romantismo. Flávio de Carvalho, artista de vanguarda atuando à frente dos valores sociais e artísticos de seu tempo, contribuiu ativamente, para a sobrevivência do modernismo depois da semana de Arte Moderna de 1922. Flávio, não só levou a sério como viveu sua tese, já que sua obra mistura-se com sua vida.
“Porque entravar o progresso com o velho mecanismo escolástico, porque venerar o passado, quando não
conhecemos nenhum pensamento, porque abafar os nossos desejos, quando não conhecemos a natureza última
desses desejos, não conhecemos se quer as conseqüências desses desejos”.
(CARVALHO, Apud. DAHER, 1982, p.100).
Anderson Benelli
Colaboração:
Ana Carolina Beraldo
Bruna Benitez
Stephani Kiss
ANEXO
Uma tese curiosa
“Diário da noite”, de 1/ 7 / 1930
(Apresentada ao IV Congresso Pan-Americano de Arquitetura e Urbanismo)
“A Cidade do Homem Nu”, tese livre do Engenheiro Civil Sr, Flavio de Rezende Carvalho.
O Sr. Flavio de Rezende Carvalho, engenheiro civil e collaborador do”Diário da Noite”, apresentou no IV Congresso Pan-Americano de Arquitetura e Urbanismo a seguinte tese, intitulada “A cidade do homem nu”.
“O mundo caminha, progride. O estudo das legislações atuais nos leva a convicção de que as cidades futuras terão que abordar problemas opostos aos trazidos até hoje pelas concepções cristãs da família e da propriedade privada”.
Cumpre a nós, povos nascidos fora do peso das tradições seculares, estudar a habitação do homem nu, do homem futuro, sem deus, sem propriedade e sem patrimônio. No norte da Alemanha, como em diversas partes do mundo culto, a ligação livre é um fato.
A concepção do estado como único proprietário tende a se impor com a socialização dos filhos e da fortuna, sendo que, na conservadora Inglaterra, o imposto sobre a herança já atingiu a 40 por cento.
O homem perseguido pelo ciclo cristão, embrutecido pela filosofia escolástica, exausto com 1500 anos de monotonia recalcada, aparece ao nosso século como uma maquina usada, repetindo tragicamente os mesmos movimentos ensinados por Aristóteles. O ciclo cristão destaca sobre as outras religiões por ter dominado o homem mais civilizado. Mas este homem civilizado acorda para ver no ciclo cristão a destruição de si mesmo. As outras religiões são narcóticos idênticos. O burguês venera o passado e os acontecimentos do passado tal como o concebeu tradição decaída: ele repete o passado sem saber porque; ele aos poucos destrói o seu organismo, as possibilidades de progresso e mudança.
Nos dias de hoje, a fadiga é manifesta, o homem maquina do classicismo moldado pela repetição continua nos feitos seculares do cristianismo, não mais pode aturar a monotonia dessa rotina. Ele perecerá asfixiado na seleção lógica, pelo mais eficiente, pelo homem natural.
A fadiga o ataca, ele precisa despir-se, se apresentar nu, sem tabus escolásticos, livre para o raciocínio e o pensamento.
Apresentar sua alma para pesquisas; procurar a significação da vida.
Violentamente atacado de cristianismo, o progresso que cura será talvez lento, mas não impossível.
Perseguido pelos tabus da sociedade, ele limita a seus desejos, aperta o seu cérebro, impedindo o raciocínio de funcionar, dando preferência á repetição por encontrá-la feita; evitando a todo custo instante a mudança, transformação indispensável ao progresso.
Por que entravar o progresso com o velho mecanismo escolástico, por que venerar o passado, quando não conhecemos nenhum limite ao pensamento, por que abafar os nossos desejos, quando não conhecemos a natureza ultima desses desejos, não conhecemos sequer as conseqüências desses desejos?
O homem livre, despido dos tabus vencidos, produzirá coisas maravilhosas, a sua inteligência libertada criará novos ideais, isto é, novos tabus, o seu ‘ego’ selecionara automaticamente em grupos, procurando caracterizar em cada grupo uma serie de tendências.
Livre, ele sublimará seus desejos com saciedade, aparecendo logo novos desejos, apontando para novas tendências. . . Isto é mudando . . . progredindo.
Livre, ele se organizará automaticamente porque não encontrará nenhum impedimento social que proíba organizar – e poderá progredir.
Presentemente, ele labora lutando contra as suas tendências sem um objetivo em vista, sem saber porque ele luta, nem aonde vai. É um mecanismo de repetição não produtivo, é um mecanismo nefasto que procura destruir o que há de mais grandioso; procura destruir a sua possibilidade de melhorar, de progredir.
O homem se destrói a si mesmo, sem saber por que.
A visão de uma nova era se apresenta para a humanidade. Um novo momento atrai o homem: como progredir?
A sua índole repele o passado por que no passado nada viu senão a repetição dos dogmas inconvenientes. Ele deseja saltar fora do circulo, abandonar o movimento recorrente e destruidor de sua alma, procurar o mecanismo de pensamento que não entrave o seu desejo de penetrar no desconhecido.
Pesquisar a sua alma nua, conhecer a si próprio.
Mas, qual será esse mecanismo?
Em S. Paulo fundou-se, há alguns anos, a ideologia antropofágica, uma exaltação do homem biológico de Nietsche, isto é, a ressurreição do homem primitivo, livre dos tabus ocidentais, apresentação sem a cultura feroz da nefasta filosofia escolástica. O homem, como ele aparece na natureza, selvagem, com todos os seus desejos toda a sua curiosidade intacta e não reprimida. O homem que totêmica, o seu tabu, tirando dele o rendimento máximo. O homem que procura transformar o mundo não métrico no mundo métrico, criando novos tabus para novos rendimentos, incentivando o raciocínio em novas esferas. Esta idéia iniciada em São Paulo por Raul Bopp, Oswaldo Costa, Clovis Gusmão, Oswald de Andrade e outros, com ramificações no Rio e outros Estados, foi entusiasticamente recebida pelo filosofo Keyserling e o urbanista Le Corbusier que viram nela um mio de progredir: uma possível felicidade longínqua.
O homem antropofágico, quando despido de seus tabus assemelha-se no homem nu.
A cidade do homem nu será sem duvida uma habitação própria para o homem antropofágico. Lá ele poderá sublimar os seus desejos organizadamente. Lá, ele poderá sentir em si a renovação constante do espírito; o movimento da vida aparecera de um realismo estonteante e ele compreendera que viver é raciocinar velozmente e dominar os tabus pela compreensão.
A cidade americana não é mais a cidade-fortim da conquista. Ela será a cidade geográfica e climatérica, a cidade do homem nu, do homem com o raciocínio livre e eminentemente antropófago.
A cidade antropofágica satisfaz o homem nu porque ela suprime os tabus do matrimonio, e da propriedade, ela pertence a toda coletividade, ela é um imenso monolito funcionando homogeneamente, um gigantesco motor em movimento, transformando a energia das idéias em necessidades para o individuo, realizando o desejo coletivo produzindo felicidade, isto é, á compreensão da vida ou movimento.
A cidade do homem nu será toda ela a casa do homem. O homem encontrará na sua casa imensa, as suas necessidades organizadas, arquivadas em locais apropriados, permitindo o acesso fácil e em imediato. Ele não perderá energia inutilmente como nosso homem de hoje. A sua fadiga será a mínima, o seu rendimento espantoso surpreendera a ele próprio, ele encontrará na sua vida uma nova felicidade, a felicidade da eficiência; um novo orgulho, o de ter conquistado a sua alma, o orgulho da compreensão da sua existência e do desejo de mudar sempre.
A cidade organizada formará um único monolito com aspecto uniforme. O aspecto será função das necessidades do homem.
Ela simbolizará pelas suas formas, pelas suas cores, o mecanismo da alma do homem nu.
A cidade será a imagem matemática do homem livre, o homem que repeliu a angustia do dogma escolástico, do homem que libertou o seu raciocínio de uma decrepitude indesejável.
As necessidades do homem serão concêntricas por ser a disposição concêntrica mais igualmente acessível a todos. Elas serão localizadas em círculos concêntricos. O bem estar geral da cidade, a magnitude da eficiência da vida da cidade depende da posição relativa dessas zonas.
Uma zona inconvenientemente locada, em relação ao centro, poderá trazer sérios distúrbios no equilíbrio orgânico das cidades, perturbando o seu processo.
As nossas cidades de hoje são verdadeiros pandemônios e vivem em constante desequilíbrio.
O homem de hoje gasta as suas energias inutilmente devido ao organismo doentio da cidade. A cidade cansa o homem, destruindo a sua energia vital.
O homem da cidade de hoje não aproveita a sua capacidade de produção, não pode aproveitar, porque o organismo burguês desorganizado tudo faz para aniquilar no homem o gosto pela vida, o entusiasmo de produzir coisas, o desejo de mudar.
A cidade do homem nu será a metrópole da oportunidade, um centro de sublimação natural dos desejos do homem, um centro de reanimação de desejos exaustos; um grande centro de produção de vida orgânica, de seleção e distribuição desta vida em formas de energia útil ao homem. Um grande centro de pesquisas para descobrir as coisas do universo e, da vida, para conhecer a alma do homem, torná-la métrica e utilizá-la no bem-estar da cidade.
A cidade do homem nu é dominada pelo centro de pesquisas, é esta a única autoridade constituída; ele seleciona e distribui, de acordo com o critério cientifico, ele domina e ordena todas as energias da metrópole, ele é o deus mutável, o deus em movimento continuo, o deus símbolo do desejo maravilhoso de penetrar no desconhecido.
O centro de pesquisas em forma de um anel externo e concêntrico com os outros anéis. Ele é o primeiro anel da cidade,
O centro de ensino de orientação do homem é um anel anexo ao centro de pesquisas. O centro de gestação, máquina imensa onde a vida estudada, catalogada, se encontra isolada por um parque do centro de pesquisas.
Devido ás magníficas condições higiênicas das cidades, o centro hospitalar é pequeno e faz parte do centro de pesquisas.
A erótica ocupada na vida do homem nu uma posição de destaque. O homem nu selecionará ele mesmo as suas formas de erótica; nenhuma restrição exigirá dele este ou aquele sacrifício; a sua energia cerebral será suficiente para controlar e selecionar os seus desejos.
A zona erótica é realmente um imenso laboratório onde se agitam os mais diversos desejos, onde o homem nu pode encontrar a sua alma antiga, pode projetar a sua energia solta em qualquer sentido, sem repressão: onde ele realiza desejos, descobre novos desejos, impõe a si mesmo uma seleção rigorosa e eficiente, forma o seu novo ‘ego’, orienta o seu libido e destrói o ilógico, aproximando-se assim do deus símbolo, sublime angustia do desconhecido da mutação do não métrico.
A religião tem o seu lugar adequadamente localizado na zona erótica. A administração se encontra no núcleo central da cidade assim como a locomoção que é toda subterrânea e se irradia desse núcleo.
A habitação está localizada num grande anel central próximo a administração.
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A cidade do homem nu é a habitação do pensamento, o homem produz idéias que são orientadas e aproveitadas na melhoria da raça e no caminhar do progresso.
É uma grande máquina de idéias para calcular o meio de progredir sempre, calcular um processo de constante renovação mental.
Os núcleos industriais e produtivos estão situados fora da grande máquina de calcular. A cidade do homem nu é um motor gastador de idéias que orienta e dirige o país movimentando a industria e a agricultura, preparando o homem para ser feliz.
O continente americano, pela sua privilegiada situação histórica, está mais apto que qualquer outro a contemplar o problema do homem nu.
O continente americano não herdou do passado o recalque trágico da filosofia escolástica, ele possui elementos próprios para criar uma civilização nua; um novo mecanismo despido dos tabus da velha Europa, uma renovação cientifica e estética que o colocará na vanguarda da organização humana.
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Convido os representantes da América a retirarem as suas mascaras de civilizados e pôr á mostra as suas tendências antropófagas, que foram reprimidas pela conquista colonial, ma que hoje seriam o nosso orgulho de homens sinceros, de caminhar sem deus para uma solução lógica do problema da vida da cidade, do problema da eficiência da vida.”
Flávio de Carvalho
Referências bibliográficas
BEHR, Shulamith. Expressionismo, São Paulo: Cosac & Naify edições, 2001, 2ªed.
DAHER, Luiz Carlos. Flávio de Carvalho: Arquitetura e expressionismo, São Paulo:
Projeto 1982.
OSORIO, Luiz Camilo. Flávio de Carvalho, São Paulo: Cosac & Naify edições, 2000.
Espaços da arte brasileira.
BIOGRAFIA
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